Prática Jurídica no Direito de Família: Adoção à Brasileira

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DOUTRINA DE DIREITO DE FAMÍLIA: “ADOÇÃO À BRASILEIRA” OU “ADOÇÃO AFETIVA”

Não raro nos deparamos com caso onde o padrasto assume a “paternidade” de filho havido de casamento anterior, registrando-o como se fosse o verdadeiro pai biológico, sem os devidos procedimentos legais. Com a mesma freqüência encontramos esses mesmos pais procurando anular judicial a paternidade, quando vem a terminar com o antigo relacionamento conjugal. Nestas hipóteses, veremos, abaixo, quais as conseqüências jurídicas desta conduta tão comum no Brasil.

 Destaquemos, primeiramente, que este ato, praticado pelo pai é irrevogável, inclusive com possibilidade de responsabilização por crime.

CÓDIGO PENAL

Art. 242 – Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:

Pena – reclusão, de dois a seis meses.

 O ato em espécie, ressalte-se, é tão a conhecida e combatida  “adoção à brasileira, também denominada de “adoção afetiva”. Na hipótese, como consabido, a lei requer trâmites legais previstos para concluir a adoção.

 Se o padrasto realiza o registro civil do  filho de forma livre e consciente, sem qualquer vício de consentimento, tais como dolo, coação, simulação ou erro, isso resulta na validade do ato jurídico.

CÓDIGO CIVIL

Art. 138  – São anuláveis os negócio jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio.

A este propósito vejamos as lições de Maria Helena Diniz:

“           Toda doutrina é unânime em salientar que a declaração da vontade é elemento essencial do negócio jurídico. Para que este validamente exista, é indispensável a presença da vontade e que esta haja funcionado normalmente. Só então o negócio jurídico produz efeitos colimados pelas partes.

( . . . )

            É o caso em que se têm os vícios de consentimento, como erro, o dolo a coação, o estado de perigo e a lesão que se fundam no desequilíbrio da atuação volitiva relativamente a sua declaração. “(Diniz, Maria Helena.Curso de Direito Civil Brasileiro. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. I. Pág. 466)

Nesse azo de pensamento, ou seja, quanto à adoção perpetrada nessas circunstâncias, dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente que:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Art. 39 – A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta lei.

§ 1º  – A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei.

Nesse compasso, tivessem os pais procedidos a adoção na forma legal jamais poderia revogar tal ato fático-jurídico.

De outro bordo, urge salientar que a “adoção à brasileiranão pode ser revogada.

 A propósito, a Legislação Substantiva Civil também enfoca a impossibilidade de revogação do reconhecimento voluntário dos filhos:

CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Art. 1.604 – Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando erro ou falsidade no registro.

Art. 1.609 – O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:

I – no registro de nascimento;

Art. 1.610 – O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento.

 Frise-se, de outro norte, que o parentesco familiar podem ser naturais ou civis, conforme de consangüinidade ou outra origem.

CÓDIGO CIVIL

Art. 1.593(CC/16 – art. 336) – O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

Assim, há parentesco civil, além da adoção, pela maternidade/paternidade sócio-afetiva, estabelecida em razão do estado de filho.

A “adoção à brasileira”, como na forma fática descrita acima, houvera a escolha de criar um(a) menor por escolha própria, sem vícios, destinando-lhe todo amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filha. Desse modo, a invalidade dos atos jurídicos que refletem no estado das pessoas não pode ser tratada da mesma forma como os atos anuláveis da vida civil. Aqueles atos geram efeitos que não se limitam a esfera meramente patrimonial. Não há, pois, disponibilidade das pessoas. Nesse contexto, a adoção em liça, mesma que não satisfeita nos moldes legais, gera para o registrado a posse do estado de filho.

 Com efeito, sobre o tema em vertente lecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que:

“Não é raro encontrar no cotidiano forense pessoa que, após o reconhecimento espontâneo em um filho alheio como próprio, tentam negar a paternidade, invocando o exame pericial de DNA. Normalmente, esses pedidos são formulados após o fracasso da relação afetiva mantida com a mãe do filho reconhecido indevidamente. Em casos tais, com supedâneo no critério socioafetivo de filiação, a jurisprudência vem mantendo o vínculo afetivo estabelecido entre pai e filho.

 Ou seja, não se trata de uma adoção, tecnicamente considerada, mas terá efeitos jurídico protegidos pelo sistema.

De fato, com espeque no art. 1.604 do Estatuto Civil, uma pessoa somente poderá vindicar estado contrário ao que resulta do registro civil de nascimento quando provar a ocorrência de erro ou falsidade do registro, o que não há, evidentemente, na adoção ‘à brasileira’, tendo ocorrido da vontade de quem registrou.

( . . . )

Outrossim, considerada a natureza irreversível e irrevogável da adoção, não faria sentido permitir um tratamento mais diferenciado a quem fez uso de um expediente ilegal, não sendo aceito ou seu arrependimento posterior.” ( In, Direito das Famílias. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Págs. 927-928).

Na mesma linha de entendimento são palavras de Maria Berenice Dias:

“ Há uma prática disseminada no Brasil – daí o nome eleito pela jurisprudência – de o companheiro da mulher perfilhar o filho dela, simplesmente registrando a criança como se fosse seu descendente. Ainda que este agir constitua crime contra o estado de filiação(CP, 242), não tem havido condenações, pela motivação afetiva que envolve essa forma de agir.

 Em muitos casos, rompido o vínculo afetivo do casal, ante a obrigatoriedade de arcar com alimentos a favor do filho, o pai busca a desconstituição do registro por meio de ação anulatória ou negatória de paternidade. A jurisprudência, reconhecendo a voluntariedade do ato, praticado de modo espontâneo, por meio da ‘adoção à brasileira’, passou a não admitir a anulação do registro de nascimento, considerando-o irreversível. Não tendo havido vício de vontade, não cabe a anulação, sob o fundamento de que a lei não autoriza a ninguém vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento (CC, art. 1604).

 ( . . . )

A intenção de formar um núcleo familiar deveria ensejar a adoção do filho da companheira e não o seu indevido registro. E, como a adoção é irrevogável(ECA, 39, § 1º) não se pode conceder tratamento diferenciado a quem faz o uso de expediente ilegal. Inquestionável a vontade de quem assim age em assumir a paternidade, não podendo ser aceito arrependimento posterior. Imperativo prestigiar a posse de estado de filho de que desfruta o registrado, na medida em que se configurou a filiação socioafetiva. ” (In, Manual de Direito das Famílias. 6ª Ed. São Paulo: RT, 2010. Pág. 489)

( negritos estão no texto original )

A propósito, diante deste quadro fático e doutrinário, vejamos a solução que colhe-se da jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE REGISTRO DE NASCIMENTO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA. “ADOÇÃO À BRASILEIRA”.

Configurou-se no caso a filiação sócio-afetiva, que, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, prevalece perante a biológica, em virtude do ato espontâneo, encoberto pela mais pura demonstração de afeto, solidariedade e vontade de possuir alguém como se filho fosse. É inegável que, mesmo diante da suspeita de não serem os pais do apelado pais biológicos, são pais adotivos, que se responsabilizaram por seu desenvolvimento desde os 7 anos, formando sólidos vínculos sócio-afetivos. Apelo desprovido. Sentença que se mantém. Precedente citado: TJRS AC 70012250528/RS, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julgado em 14/09/2005. (TJRJ – AC 2007.001.36262; São João de Meriti; Relª Desª Vera Maria Soares Van Hombeeck; Julg. 18/09/2007; DORJ 14/02/2008; Pág. 312)

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRASILEIRA. NECESSIDADE DE ANÁLISE DE CADA CASO CONCRETO. EXISTÊNCIA DE PAI BIOLÓGICO QUE BATIZOU O MENOR. DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA.

Nos casos em que está em jogo a chamada adoção à brasileira, tal como em todos os outros processos, é indispensável que se leve em consideração as peculiaridades e as circunstâncias de cada caso em especial. Considerando que a jurisprudência majoritária da Corte entende que a adoção (apesar de ser à brasileira) trata-se de ato irrevogável, indispensável que, na medida do possível, se busque a participação do pai biológico no processo. Como no presente caso, o pai biológico é conhecido e até batizou o menor como seu filho, indispensável sua citação na qualidade de litisconsórcio obrigatório. DESCONSTITUIRAM A SENTENÇA. POR MAIORIA. (TJRS – AC 70008880692; Santa Maria; Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Rui Portanova; Julg. 01/07/2004)

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE REGISTRO CIVIL. RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO DE FILHA NÃO BIOLÓGICA. “ADOÇÃO À BRASILEIRA”. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. INEXISTÊNCIA DE PROVA CAPAZ DE MACULAR O RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO DA PATERNIDADE. COMPARECIMENTO VOLUNTÁRIO DO PAI REGISTRAL AO CARTÓRIO DE REGISTRO CIVIL. DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS COMPROBATÓRIOS DE DOPAI ENCONTRAR-SE EM PLENO GOZO DE SAÚDE FÍSICA E MENTAL, E DO CONHECIMENTO DE NÃO SER SUA FILHA BIOLÓGICA. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO CAPAZ DE DESCONSTITUIR A PATERNIDADE. “ADOÇÃO À BRASILEIRA” CARACTERIZADA.

Registro de filho biológico de outrem como se seu fosse, desprezando a observância do rito da adoção disciplinado pela Lei Civil. Incomprovado vício capaz de macular o registro de nascimento da apelada. Válida a declaração de vontade do pai registral. Decisão a quointegralmente confirmada. Apelação conhecida e não provida. Sentença mantida. Unânime. (TJCE – APL 1599-31.2000.8.06.0163/1; Sexta Câmara Cível; Relª Desª Sérgia Maria Mendonça Miranda; DJCE 26/05/2011; Pág. 105)

CIVIL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA. VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. COMPROVAÇÃO. RELAÇÃO PATERNO-FILIAL CONFIGURADA. DECISÃO MANTIDA.

I. Sobreleva deixar consignado que a invalidade dos atos jurídicos que refletem no estado das pessoas não pode ser tratada da mesma maneira daquela que eventualmente pode eivar os demais atos da vida civil, isto porque aqueles geram efeitos que não se circunscrevem na esfera meramente patrimonial e, portanto, de disponibilidade das pessoas. Nesta linha de raciocínio é inviável deixar de reconhecer que a adoção, ainda que à moda brasileira, gera para o registrado a posse do estado de filho.

II. No caso dos autos, transcorrido mais de 30 (trinta) anos do registro do demandado, não se mostra razoável agasalhar a tese da nulidade do registro de seu nascimento, sob o frágil argumento de que o mesmo é viciado em drogas e vem causando problemas ao autor, máxime porque estas situações não caracterizaram qualquer vício de vontade capaz de gerar a nulidade do ato jurídico consolidado ao longo do tempo, além do que a própria concepção da adoção à brasileira traz consigo a idéia de que o sujeito tinha conhecimento de que não estava a registrar filho próprio, sendo, portanto, incompatível com a noção de erro ou arrependimento;

III. Considerando-se que o demandado conviveu com o autor até a idade adulta, formando com este um núcleo familiar, dentro do qual sua personalidade e identidade foram formadas, reputa-se descabida qualquer alteração do registro civil daquele, sob pena de se ferir a sua própria dignidade humana, mormente porque a mágoa, o ressentimento ou os dissabores existentes, por si só, não têm o condão de desconstituir uma situação de fato e de direito que durante muitos anos foi pautada na relação sócio-afetiva no convívio entre pai e filho. Precedentes do STJ;

IV. Recurso conhecido e improvido. (TJSE – AC 2010214850; Ac. 6118/2011; Segunda Câmara Cível; Relª Desª Marilza Maynard Salgado de Carvalho; DJSE 23/05/2011; Pág. 48)

PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. DESERÇÃO NÃO RECONHECIDA. TEMPESTIVIDADE. NEGATIVA DE PATERNIDADE. REGISTRO REALIZADO SEM ERRO OU COAÇÃO. VERDADE REGISTRAL DEVE PREVALECER. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E SUPREMACIA DO INTERESSE DO MENOR. DIGNIDADE PESSOAL: DIREITO AO NOME

I – A preliminar de deserção fica rejeitada, com base no princípio da isonomia e com o fito de garantir a prestação jurisdicional de forma justa e protetiva dos direitos fundamentais de criança/adolescente envolvido na lide, nos termos do artigo 198, I, do CPC;

II – O registro foi realizado pelo demandante ciente da verdadeira paternidade da criança;

III – Assim, reconhecida a paternidade, tem-se o que a doutrina chama de adoção à brasileira;

IV- Reconhecimento de paternidade é irretratável e irrevogável – direito pessoal do réu; V – Provimento da apelação. Reforma da sentença a quo. Decisão Unânime. (TJPA – AC 20103014130-7; Ac. 96921; Belém; Fórum Cível; Rel. Des. Leonam Gondim da Cruz Junior; Julg. 28/04/2011; DJPA 02/05/2011)

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE REGISTRO CIVIL. RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO DE FILHA NÃO BIOLÓGICA. OCORRÊNCIA DA DENOMINADA “ADOÇÃO À BRASILEIRA”. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO CAPAZ DE DESCONSTITUIR A PATERNIDADE.

1. O reconhecimento da paternidade é, em regra, ato irrevogável, admitindo-se a anulação do registro civil de nascimento somente em situações excepcionais, desde que haja elementos suficientes para desconstituir o reconhecimento anteriormente efetivado.

2. No caso em epígrafe, não há qualquer prova capaz de demonstrar a existência de vício de consentimento no reconhecimento espontâneo da paternidade, pois, analisando detidamente a certidão de nascimento da recorrida, verifica-se que o pai registral compareceu ao cartório de registro civil, declarando voluntariamente ser o seu genitor. 3. Ademais, nos depoimentos testemunhais, restou demonstrado que o falecido tinha, ao registrar a apelada como filha, boas condições de saúde e conhecimento de que a mesma não era sua filha biológica, sendo, portanto, incompatível com a noção de erro, uma vez que não tinha uma falsa percepção da realidade.

4. Assim, em que pese a inexistência de filiação biológica, o reconhecimento livre e espontâneo da paternidade, sem qualquer vício de consentimento, caracteriza a denominada “adoção à brasileira”, situação em que há registro de filho biológico de outro como se seu fosse, sem a observância do regular procedimento de adoção imposto pela Lei Civil.

5. Portanto, não comprovada a existência de qualquer vício capaz de macular o registro de nascimento da recorrida, afigura- se válida a declaração de vontade do de cujus. Logo, mostra-se intocável a respeitável sentença vergastada.

6. Apelação conhecida e não provida. Sentença mantida. (TJCE – APL 631201-19.2000.8.06.0001/1; Quinta Câmara Cível; Rel. Des. Francisco Barbosa Filho; DJCE 17/02/2011)

 

DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULATÓRIA DE REGISTRO DE NASCIMENTO. ADOÇÃO À BRASILEIRA’ CARACTERIZADA. ATO JURÍDICO PERFEITO. AUSÊNCIA DE VÍCIO. PEDIDO IMPROCEDENTE.

Não pode ser desconstituída a declaração de vontade daquele que, por ato de livre e espontânea vontade, reconhece filho não biológico como seu, se ausente qualquer prova de que o ato está eivado de qualquer dos vícios previstos no artigo 171 do Código Civil. Impossibilidade de se anular a “adoção à brasileira” ocorrida, diante do reconhecimento voluntário e espontâneo da filiação. (TJMG – APCV 1958985-30.2008.8.13.0024; Belo Horizonte; Sexta Câmara Cível; Rel. Des. Maurício Barros; Julg. 30/11/2010; DJEMG 21/01/2011)

 Paradigmas sobre o tema em enfoque também são abundantemente encontrados nos julgados do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO NUTRIDO DURANTE APROXIMADAMENTE VINTE E DOIS ANOS DE CONVIVÊNCIA QUE CULMINOU COM O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA PATERNIDADE. VERDADE BIOLÓGICA QUE SE MOSTROU DESINFLUENTE PARA O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE ALIADA AO ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO. PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO REGISTRO SOB O ARGUMENTO DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ERRO SUBSTANCIAL AFASTADO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. PERFILHAÇÃO IRREVOGABILIDADE. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I – O Tribunal de origem, ao contrário do que sustenta o ora recorrente, não conferiu à hipótese dos autos o tratamento atinente à adoção à moda brasileira, pois em momento algum adotou a premissa de que o recorrente, ao proceder ao reconhecimento jurídico da paternidade, tinha conhecimento da inexistência de vínculo biológico;

II – O ora recorrente, a despeito de assentar que tinha dúvidas quanto à paternidade que lhe fora imputada, ao argumento de que tivera tão-somente uma relação íntima com a genitora de recorrido e que esta, à época, convivia com outro homem, portou-se como se pai da criança fosse, estabelecendo com ela vínculo de afetividade, e, após aproximadamente vinte e dois anos, tempo suficiente para perscrutar a verdade biológica, reconheceu juridicamente a paternidade daquela;

III – A alegada dúvida sobre a verdade biológica, ainda que não absolutamente dissipada, mostrou-se irrelevante, desinfluente para que o ora recorrente, incentivado, segundo relata, pela própria família, procedesse ao reconhecimento do recorrido como sendo seu filho, oportunidade, repisa-se, em que o vínculo afetivo há muito encontrava-se estabelecido;

IV – A tese encampada pelo ora recorrente no sentido de que somente procedeu ao registro por incorrer em erro substancial, este proveniente da pressão psicológica exercida pela genitora, bem como do fato de que a idade do recorrido corresponderia, retroativamente, à data em que teve o único relacionamento íntimo com aquela, diante do contexto fático constante dos autos, imutável na presente via, não comporta guarida;

V – Admitir, no caso dos autos, a prevalência do vínculo biológico sobre o afetivo, quando aquele afigurou-se desinfluente para o reconhecimento voluntário da paternidade, seria, por via transversa, permitir a revogação, ao alvedrio do pai-registral, do estado de filiação, o que contraria, inequivocamente, a determinação legal constante do art. 1.610, Código Civil;

VI – Recurso Especial a que se nega provimento. (STJ – REsp 1.078.285; Proc. 2008/0169039-0; MS; Terceira Turma; Rel. Min. Massami Uyeda; Julg. 13/10/2009; DJE 18/08/2010)

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. PREPONDERÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DA ESTABILIDADE FAMILIAR.

A peculiaridade da lide centra-se no pleito formulado por uma irmã em face da outra, por meio do qual se busca anular o assento de nascimento. Para isso, fundamenta seu pedido em alegação de falsidade ideológica perpetrada pela falecida mãe que, nos termos em que foram descritos os fatos no acórdão recorrido considerada a sua imutabilidade nesta via recursal -, registrou filha recém-nascida de outrem como sua. – A par de eventual sofisma na interpretação conferida pelo TJ/SP acerca do disposto no art. 348 do CC/16, em que tanto a falsidade quanto o erro do registro são suficientes para permitir ao investigante vindicar estado contrário ao que resulta do assento de nascimento, subjaz, do cenário fático descrito no acórdão impugnado, a ausência de qualquer vício de consentimento na livre vontade manifestada pela mãe que, mesmo ciente de que a menor não era a ela ligada por vínculo de sangue, reconheceu-a como filha, em decorrência dos laços de afeto que as uniram. Com o foco nessa premissa – a da existência da socioafetividade -, é que a lide deve ser solucionada. – Vê-se no acórdão recorrido que houve o reconhecimento espontâneo da maternidade, cuja anulação do assento de nascimento da criança somente poderia ocorrer com a presença de prova robusta – de que a mãe teria sido induzida a erro, no sentido de desconhecer a origem genética da criança, ou, então, valendo-se de conduta reprovável e mediante má-fé, declarar como verdadeiro vínculo familiar inexistente. Inexiste meio de desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade daquela que um dia declarou perante a sociedade, em ato solene e de reconhecimento público, ser mãe da criança, valendo-se, para tanto, da verdade socialmente construída com base no afeto, demonstrando, dessa forma, a efetiva existência de vínculo familiar. – O descompasso do registro de nascimento com a realidade biológica, em razão de conduta que desconsidera o aspecto genético, somente pode ser vindicado por aquele que teve sua filiação falsamente atribuída e os efeitos daí decorrentes apenas podem se operar contra aquele que realizou o ato de reconhecimento familiar, sondando-se, sobretudo, em sua plenitude, a manifestação volitiva, a fim de aferir a existência de vínculo socioafetivo de filiação. Nessa hipótese, descabe imposição de sanção estatal, em consideração ao princípio do maior interesse da criança, sobre quem jamais poderá recair prejuízo derivado de ato praticado por pessoa que lhe ofereceu a segurança de ser identificada como filha. – Some-se a esse raciocínio que, no processo julgado, a peculiaridade do fato jurídico morte impede, de qualquer forma, a sanção do Estado sobre a mãe que reconheceu a filha em razão de vínculo que não nasceu do sangue, mas do afeto. – Nesse contexto, a filiação socioafetiva, que encontra alicerce no art. 227, § 6º, da CF/88, envolve não apenas a adoção, como também “parentescos de outra origem”, conforme introduzido pelo art. 1.593 do CC/02, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural. – Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a maternidade que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação. – Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano. Permitir a desconstituição de reconhecimento de maternidade amparado em relação de afeto teria o condão de extirpar da criança – hoje pessoa adulta, tendo em vista os 17 anos de tramitação do processo – preponderante fator de construção de sua identidade e de definição de sua personalidade. E a identidade dessa pessoa, resgatada pelo afeto, não pode ficar à deriva em face das incertezas, instabilidades ou até mesmo interesses meramente patrimoniais de terceiros submersos em conflitos familiares. – Dessa forma, tendo em mente as vicissitudes e elementos fáticos constantes do processo, na peculiar versão conferida pelo TJ/SP, em que se identificou a configuração de verdadeira “adoção à brasileira”, a caracterizar vínculo de filiação construído por meio da convivência e do afeto, acompanhado por tratamento materno-filial, deve ser assegurada judicialmente a perenidade da relação vivida entre mãe e filha. Configurados os elementos componentes do suporte fático da filiação socioafetiva, não se pode questionar sob o argumento da diversidade de origem genética o ato de registro de nascimento da outrora menor estribado na afetividade, tudo com base na doutrina de proteção integral à criança. – Conquanto a “adoção à brasileira” não se revista da validade própria daquela realizada nos moldes legais, escapando à disciplina estabelecida nos arts. 39 usque 52 – D e 165 usque 170 do ECA, há de preponderar-se em hipóteses como a julgada consideradas as especificidades de cada caso – a preservação da estabilidade familiar, em situação consolidada e amplamente reconhecida no meio social, sem identificação de vício de consentimento ou de má-fé, em que, movida pelos mais nobres sentimentos de humanidade, A. F. V. manifestou a verdadeira intenção de acolher como filha C. F. V., destinando-lhe afeto e cuidados inerentes à maternidade construída e plenamente exercida. – A garantia de busca da verdade biológica deve ser interpretada de forma correlata às circunstâncias inerentes às investigatórias de paternidade; jamais às negatórias, sob o perigo de se subverter a ordem e a segurança que se quis conferir àquele que investiga sua real identidade. – Mantém-se o acórdão impugnado, impondo-se a irrevogabilidade do reconhecimento voluntário da maternidade, por força da ausência de vício na manifestação da vontade, ainda que procedida em descompasso com a verdade biológica. Isso porque prevalece, na hipótese, a ligação socioafetiva construída e consolidada entre mãe e filha, que tem proteção indelével conferida à personalidade humana, por meio da cláusula geral que a tutela e encontra respaldo na preservação da estabilidade familiar. Recurso Especial não provido. (STJ – REsp 1.000.356; Proc. 2007/0252697-5; SP; Terceira Turma; Relª Minª Fátima Nancy Andrighi; Julg. 25/05/2010; DJE 07/06/2010)

Portanto, diante dessas considerações, a eventual pretensão de nulidade do assento de paternidade, em não havendo vício de consentimento no registro de nascimento do filho, torna irrevogável o ato registral antes procedido.

Destarte, as relações parentais de filiação baseadas na afetividade, ou constituídas com base no afeto, devem sobrepor-se à filiação biológica, exatamente porque ninguém passa a ser mãe/pai, só porque descobriu que biologicamente é o pai/mãe, e também, não necessariamente alguém que descobre não ser pai/mãe biológico, deixa de ser pai/mãe afetivo. As relações de filiação, por conseguinte, não se iniciam ou terminam apenas com base na verdade biológica.

Em arremate, sendo a adoção feita sem vício de consentimento, mesmo que ao arrepio da lei, resta por inviável qualquer pretensão judicial de anular a paternidade registral.

Autor: [ Alberto Bezerra de Souza ]

3 Comentários
  1. Ivana Alves de Moraes Medeiros Usuário diz

    Excelente artigo!
    Bem fundamentado doutrinária e jurisprudencialmente, esclarecendo as dúvidas sobre essa forma de adoção.
    Obrigada pelo brilhante material!

    1. Alberto Bezerra Usuário diz

      Muito grato.
      Alberto Bezerra

  2. Rosana Cristina de Moura Usuário diz

    Parabéns!

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